domingo, setembro 09, 2007

Felicidade ou sorte!

Prosa vai, prosa vem, ela comparece: a felicidade, objeto irresistível de diálogos ociosos.

Tudo começou porque este amigo acabara de ler Albert Camus e minha mente, sempre muito evoco-associativa, trouxe à tona um pensamento avulso do mencionado autor, que legislava sobre a busca da felicidade assim:

"You will never be happy if you keep searching for what happiness consists of."

Acontece que eu descordo. Mais que isso, eu praticamente não defendo nenhum dos prolóquios sobre a felicidade que eu já lí, ouvi ou tentei cunhar na minha vida. Perece-me que aproximam-se prejudicialmente da obviedade e/ou afastam-se demasiado da amplitude do vocábulo.

Isso porque essas sentenças empenham-se em revelar-lhe um significado à partir de sensações pessoais que, mesmo quando servem-se de um parecer comum à maioria, figuram unicamente como simplificações à prestar exemplo. Exemplos são bons modelos para instrução, é claro, mas falham ao despojar o estímulo à analise satisfazendo a razão precipitadamente.

Camus foi um pensador de grande expressão, desconheço o quê o levou à concluir a máxima antes citada, mas o que me leva à divergir dela é, sobretudo, uma admiração pela capacidade humana de reinterpretar os ingênuos enganos cometidos pela nossa reflexão ao longo dos séculos.

A exemplo, temos o fato de termos etiquetado com uma só palavra o fruto de inúmeras emoções e seus efeitos. Felicidade, como estado momentâneo de humor, é um mesclado de privação que se converteu usufruto, um sobressalto que afincou sossego, um recear que arranjou confiança, um bocado de dantes que encontraram depois. E quem não conheceu o antes, basta pensar que ele existe para sentir-se bem com o que desfruta. E quem não conhece o depois, basta imaginar que ele existe para sofrer sua abstinência.

Por causa dessa diferença de intensidades, divididiu-se a palavra em duas. Sim, porque estar triste ou feliz são gradações interpretativas de uma mesma sensação em relação à acontecimentos externos. Assim como o são todos os sentimentos que sugerem antítese gramatical.

O glossário que o homem produziu, para lhe servir de locução entre seus semelhantes, vinculou-se à pluralidade de experiências decorridas e contraiu novos sentidos.

Eis que surge o equívoco mais viroso que adoece a humanidade até os dias de hoje: a acepção da felicidade em relação à existência de um sujeito dentro de sua sociedade.

Ora, a sociedade pode ter nascido de uma necessidade de sobrevivência, mas a civilidade nasceu da vontade de se manter essa sociedade unida. Para isso foi preciso mudar os valores naturais do homem para valores artificiais coletivos. Ser feliz ou infeliz é tão sintético quanto o querer usar roupas coloridas em um dia quente de verão!

Só que isso não é a principal cilada sobre a felicidade, sua maior deformidade é essa idéia de ventura unificada que nos faz querer uma prosperidade que só existe em homogeneidade para fins ilustrativos da linguagem.

Ninguém é somatoriamente feliz ou infeliz, a felicidade se decompõe nas esferas em que sustentamos nossa existência. Seja profissional, relacional, recreacional, elas não se movem eqüipotencialmente. E se o fazem com certa simetria, é singular evento de duração assaz suscetível.

Mas não acontece, algumas vezes, que o contentamento excedente de uma parece suplantar a insuficiência de outras? Claro, assim como um condoer-se de uma pode ofuscar os êxitos de outras a ponto de destituir-lhes o propósito.

Conquistar uma fortuna em uma esfera não garante a felicidade para ninguém. O homem precisa saciar a vontade de sentir-se satisfeito e, essa vontade, reclama uma harmonia na direção em que seus esforços estão sendo concentrados ou distribuídos.

Não se trata, então, de uma mera casualidade de apreciar aquilo que já se tem, mas, sim, um constante e íntimo deliberar sobre suas vontades e fiéis intenções, bem como as trilhas e as renúncias que podem ser feitas para correspondê-las.

Ser infeliz em uma ação, em um dia, com determinada habilidade não é propriamente ser infeliz. Se não conseguimos realizar uma coisa e isso nos desgosta, encontremos alguém que nos ensine, treinemos mais ou achemos uma excelente desculpa para desistir. O que nos contentar melhor.

Porém, se a dificuldade é não nos sentirmos felizes e não saber ao quê culpar, aqui vai algo para pensarmos:

O valor de uma ambição é fundamentado em méritos sociais e morais fabricados em prol do progresso de uma sociedade. Mesmo nosso desejo mais honesto de realizar alguma obra é influenciado pelo quê o homem decidiu que era importante entre os homens.

O movimento filosófico, político e econômico de uma coletividade é conduzido por homens presos à considerações morais que tentam enfraquecer a sagacidade da compreensão individual para negar-lhes a jurisprudência da deliberação e até mesmo do arbítrio.

Contudo, não levanto essa intriga para que nos tornemos anarquistas, mas para que não compremos felicidades superfaturadas com falsas importâncias, porque elas nos persuadem à abdicar de coisas que nos são particularmente valiosas.

Há muito tempo viemos aprendendo a valorizar as coisas pelo preço que temos de pagar por elas, isso nos leva, algumas vezes, à cometer erros de avaliação que distorcem a estima, colocando em segundo plano aquilo que já deveríamos ter aprendido a priorizar.

Afinal, não somos apenas cidadões que precisam ser úteis para uma sociedade que não cessa de se desenvolver. Também somos anônimos, executantes e aprendizes na grande maioria das coisas em que não nos tornamos bons, mas que nos proporcionam o desenvolvimento pessoal necessário à sensação de ser feliz.

Favorável à reduzida felicidade da qual padecem aqueles que colhem um pungente revés, menciono um filete de roteiro do filme Los Amantes del Círculo Polar, que me foi indicado por alguém que, pretendendo ou não, ao cruzar-me o caminho, provocou-lhe significativas mudanças:

"Los disgustos de la vida hay que aceptarlos con buen humor. Porque igual que vienen, se van. No pueden durar siempre."

Àqueles cuja infelicidade é conseqüência da miséria de possibilidades, demandada pela simulada felicidade social que fomentamos, e da qual eles não estão inseridos, só tenho à dizer que me parece muito conveniente que lhes tenham sempre confortado com ideais de justiça, amor e prosperidade espirituais.

É por lembrar sempre da existência dessas pessoas que todos os ditos sobre a felicidade me parecem de mal gosto. Principalmente os que parecem terem sido feitos para a assimilação delas.

Não dá para desvirar a ampulheta do processo civilizatório, urbano ou mesmo tecnológico para começar tudo denovo, mas dá para promover as mudanças do juízo que regem suas regras, não dá? Nisso até mesmo a infelicidade foi um grande impulso para as mudanças que nos fizeram amadurecer até aqui...

3 comentários:

Leonardo Larrossa disse...

Muito bom texto.

Nunca vi alguém amarrar tantas variáveis tão habilidosamente como você o fez nesse texto.

O olhar dos atos e fatos precedentes à felicidade por uma ótica individualista é o ponto-chave para que consigamos separar o "todo" da "parte".

Hegel já, sabiamente, mencionou (e que sou eu para discordar) que não é o todo que precede a parte, mas, na verdade, um todo que subsiste na e através da mais extrema autonomização das partes.

Infelizmente, o modelo que nos é imposto para a evolução da sociedade funciona como obstáculo às realizações mais humildes, simples ou até menos tributárias ao crescimento político, econômico ou social.

Aproveito a ocasião para elogiar seu blog que nos presenteia com textos críticos muito bem elaborados.

Comprometo-me a ser um leitor assíduo.

Grande abraço,

Anônimo disse...

"los amantes del circulo polar... um dos meus filmes favoritos, obrigada p/ visita,um abraço.

Adriana Amaral disse...

excelente texto!!! :)