quinta-feira, junho 26, 2008

CHRONOS

Não foi Einstein quem me apresentou o continuum de espaço-tempo com o qual situamos as coisas no universo, foi Proust. Em sua literatura romanesca encontrei o termo “quarta dimensão” pela primeira vez. Publicado quase simultaneamente às teses que elaboram a Teoria da Relatividade, a coletânea Em Busca do Tempo Perdido demonstra com insinuante evidência que o tempo, assim como as três dimensões espaciais, também se dilata e contrai.

No entanto, nada irei falar da generalidade dessas obras que, durante anos, desencadearam um efeito intimidante sobre o meu interesse em principiar-lhes leitura. Ficando, ambas, à longa espera daquele tanto imperioso de ousadia pelo qual conquistamos autoridade para desvendar os prazeres da vida.

Porém, quero dizer que o primeiro volume proustiano esteve em minhas mãos quando mal completara quatorze anos, e que não fui capaz de finalizá-lo em idade tão desprevenida. Mesmo assim, ele serviu de motor da necessidade que sentia de despertar minha consciência para o caminhar inevitável dos anos.

O tempo, segundo meu entendimento, é a medida que adicionamos à todos os cálculos com os quais estimamos tudo que nos diz respeito. Ele assoma importâncias, condena investimentos, regula o planejar da vida.

E, ainda que não o utilizemos conscientemente, seguirá sua trajetória linear e irreversível.

Se o víssemos, não poderíamos ignorá-lo. Se o tocássemos, o teríamos sob controle. Se o sentíssemos transcorrer os momentos, não esqueceríamos tão fácil que ele avança.

Nossa percepção temporal o faz parecer relativo, mas não se deixe enganar: contemplar os dias ou atropelar as horas em nada altera o flutuar do pêndulo.

Sendo o futuro uma superposição de probabilidades e coincidências, ninguém pode estar consideradamente à frente do seu tempo.

Também não se pode parar no tempo, como acusam os mais jovens. As mãos invisíveis da existência nos empurram com sincronia atômica ao longo de nossa delimitada permanência mundana.

Tampouco conseguimos correr atrás do tempo perdido, são transitórias e acidentais as possibilidades desperdiçadas.

Nenhum de nós gasta o tempo à toa, o tempo é que à todos consome sem fazer considerações.

Não! Não se permita acreditar que os livros são eternos, que Shakespeare é imortal, que a genialidade é perdurável. Expanda os limítrofes de sua notação cronológica. Coloque, primeiramente, o infinito em oposição aos átimos que compõem sua vida. Depois, aos que possivelmente lhe restam à preencher.

Mas nem pense em se exasperar com a monstruosa desigualdade, a vida não é tão curta que não se possa desfrutá-la sossegado.

Quanto à Albert Einstein, ainda não posso afirmar se esteve ou não escrevendo abobrinhas. Já Marcel Proust, esse segue me iludindo irrepreensivelmente com seus belos relativismos.

***


“A meia altura de uma árvore indeterminada, um pássaro invisível empenhava-se em que fosse breve o dia, explorando com uma nota prolongada a solidão circundante, mas recebia desta uma réplica tão unânime, um contragolpe tão reduplicado de silêncio e imobilidade que dir-se-ia que ele acabava de parar para sempre o instante que procurava fazer passar mais depressa.” (No Caminho de Swan - Marcel Proust)

quinta-feira, junho 12, 2008

1992

Em 1992, Julian era o garoto mais popular entre as meninas da sexta e sétima série da Escola Ildefonso Simões Lopes, pertinentemente apelidada de Rural. Ele não era alto e nem atlético. Não era nerd e nem mauricinho. Mas tinha cabelos longos escuros, sedosamente encarolado nas pontas, e tinha um ar de rebeldia. Aos olhos fantasiosos das meninas, que em fase tão inicial de paixões se alimentam quase que exclusimante de exterioridades, Julian seduzia com pouco ou nada de empenho.

Karina era descuidada demais com a aparência para chamar a atenção com a beleza que lhe era própria. Tímida demais para interagir com outras turmas. Só conquistava a amizade dos colegas pela habilidade com os estudos. E era popular apenas entre os alunos do ensino de agronômia, já que era a única do nível fundamental à frequentar a biblioteca com a assiduidade dos alunos do grau técnico.

Julian e Karina não se falavam, mas tinham amigos em comum. Todo dia, após a aula, juntavam-se à outros pré-adolescentes nas escadarias do prédio da Litoral, única rádio de frequência modulada da cidade provinciana. Ali ficavam em vários grupinhos durante os trinta minutos antes do entardecer se esvair. Tomando sorvete, conversando alto, discutindo sobre provas, jogos e rumores escolares.

Karina suspirava, exatamente como suas coleguinhas do sexto ano, quando via Julian, mas não se imaginava andando de mãos dadas com ele como elas o faziam. O garoto do sétimo ano pairava nos sonhos de Karina como algo intocável. Apenas gostava de pensar nele, nos seus cabelos, no movimento de seus braços quando conversava. Não havia desejos nos pensamentos com que o cercava, apenas um admirar platônico. Não tinha ciúmes de seu sucesso em atrair namoradas porque não se visualizava em possibilidades de ser uma eleita das atenções do menino.

Julian gostava de Metallica, mas no questionário de lembranças de uma amiga, na folha sobre música preferida, ele respondeu:

More Than Words, Extreme

Karina gostava de Guns n' Roses, mas na linha logo abaixo da dele escreveu:

Never Tears Us Apart, INXS

Todo dia ela deixava bilhetinhos pedindo que uma das duas músicas tocasse no programa Litoral By Night, que todos ouviam porque o radialista, Taborda, lia os recadinhos deixados pelos alunos entre uma música e outra.

Seguidamente havia recadinhos para Julian, mas Karina nunca deixou uma única linha. Nem sequer considerava fazê-lo se escondendo no anonimato. Mal admitia para si mesma que o adorava com o doce julgamento que fazia dele. Mantinha em segredo seus sentimentos para não sofrer as dimensões da indiferença.

Contudo, quis o acaso que um dos colegas de Julian se enamorasse da sua colega Mariana, e os grupos se vincularam. A menina acanhada, sem censurar muito suas articulações, acabou por exceder a vergonha e fazer amizades. Julian e Karina travaram algumas conversas inexpressivas, nas quais Karina o tratava com muita atenção. Disfarçando, vez por outra, os sobressaltos de sua respiração e o embaraço de estar em sua presença como se sua própria vida dependesse desse fingimento. Para ela, Julian ainda era o inalcansável de sempre. Nem por um segundo desconfiou que o menino andava se exibindo mais que o natural.

Quando Mariana contou-lhe que Julian havia lhe confiado a tarefa de arranjar um encontro com ela às escondidas, Karina teve de repetir mentalmente a idéia algumas vezes até conseguir garantir ao seu incrédulo coração que tal acontecimento estava mesmo se realizando.

Preciosos são os corações das meninas, que se expremem e palpitam aflitos antes do esperado primeiro beijo. E descontrolados quando os lábios finalmente são tocados pelo menino que dá ritmo à suas batidas. Karina teve as duas sensações em uma só. Num único beijo. No primeiro. Nem na imaginação mais frutífera poderia ter sido mais sublime o momento.

Vulneráveis são todos os corações do mundo, que da fonte do amor bebendo, só do amor se ocupam. Karina sumiu da biblioteca. Se limitava à suspirar nas aulas de matemática. Converteu-se torcedora do Internacional para corresponder seu par romântico. Tudo era planos na espera de Karina.

Veio o segundo encontro dos beijos exaltados de saudade. O terceiro, dos beijos repletos de carinho. O dia dos namorados se aproximava. Tudo era espera nos planos de Karina.

Mas os encontros acabaram inexplicavelmente. Ficaram interrompidos nas expectativas inconfessas da menina.

Ao invés disso, no dia 12 de junho, um recadinho no rádio denunciou: Julian e Fabiane estavam juntos. E antes que a garota considerasse se sentir culpada pelas coisas que disse e deixou de dizer, como fazem constantemente os que amam sem medida, outro recadinho lhe comunicava que, desde o início daquele ano, o melhor amigo de Julian era perdidamente apaixonado por Karina.



Dedico este conto à Gabriel Daudt. Autor do conto 1984, que serviu de inspiração à esse.
Está aí, eis que consigo escrever contos! Não será premiado na Feira do Livro de Porto Alegre como foi o teu, mas foi escrito para retribuir-lhe o presente de natal que recebi em fevereiro. Espero que não decepcione.
Um grande abraço da sua ex-funcionária inexpansiva, fã ausente e dedicada amiga.