quarta-feira, abril 23, 2008

quinta-feira, abril 17, 2008

Pretérito-Mais-Que-Perfeito

Entendo agora o saudosismo na poesia de Carlos Drummond. Só se pode decifrar um sentimento quando o colocamos na bagagem, afinal.

Não é peso, quero deixar claro, é, antes disso, coisa que compensa a carga.

Numa noite dessas, abandonada pelo sono e importunada por certa lástima, passei a percorrer o passado em busca de noites que pudessem sossegar tal vigília involuntária e me fazer adormecer na sensação invocada pela memória.

De início vieram múltiplices lembranças e acreditei que deveria me ater às mais calmas. Logo desisti por entender que não eram pungentes o suficiente para arrancar-me do presente.

Passei, então, a trazer ao meu travesseiro, numa tentativa que beirava o desespero, as noites mais voluptuosas que encontrava.

Para o desaponto de minha vontade de desmemória, os encantos dessas noites haviam se esvaído junto com os desejos aposentados. Só sobravam lembranças detalhadas de sentimentos que já não pertenciam à minha capacidade de percebê-los.

Cheguei a pensar nas noites ruins para testar seus poderes de sobrepujar aquela angústia última que me tirava o descanso. Mas nelas também não havia nada que não houvesse superado ou não observasse com o amor dos que sabem perdoar a si mesmos.

Piedoso amigo é o tempo, que nos leva os anos com o doce beijo da compensação.

Foi assim que decidi exumar uma coisa mais forte, e comecei a listar as noites mais felizes de minha vida. E foi quando tentei posicioná-las em ordem de importância que descobri, na infância, o esplendor máximo da vida.

Que suprema é a felicidade que se vive nesses anos de pouca covardia e vontades ativas de ventura!

Quando ainda não temos as vivencias de fracasso que tanto moldam, na vida adulta, nossas atitudes.

Apenas atenção nos basta e nossos desgostos duram pouco mais que alguns minutos. Verte a última lágrima e já o esquecimento nos rouba a atenção para nossos livrinhos de colorir. Volta-se à repintar a vida sem sentir a falta de nenhuma tonalidade.

Descobri, dentre muitas, enfim, a noite mais feliz de minha vida. Enterrada até então sobre os anos de inércia reflexiva. Caso estejam a querer saber, foi a última noite de minha infância. Se existe um marco entre fases da vida, minha infância terminou aí:

Era o último dia de aula do segundo ano do ensino fundamental. Dezembro de 88. Fiz uma apresentação de Fada Açucarada no encerramento escolar que deixaria Tchaikovsky desiludido e sorridente ao mesmo tempo.

Naquela tarde, iria viajar para a casa de praia da minha tia Eurides, irmã de meu pai. Passaria o período de férias com alguns primos na beira-mar. Férias era uma palavra relativamente nova para mim ainda, mas a esperava como algo fantástico.

Não consegui lembrar de absolutamente nada entre a saída da escola e a chegada no litoral. Mas à partir desse ponto, todos os detalhes se juntaram às emoções vivenciadas e flutuaram na superfície de minha consciência.

Chovia. As lajotas do caminho de entrada estavam escorregadias. A má iluminação das lâmpadas amarelo-incandescente da sala denunciavam que o agito naquele lugar se dava nas horas diurnas. Havia comida na mesa e a televisão estava ligada. Os adultos conversavam, eu observava e respondia. Não era muito tarde pois me deixaram ficar acordada algum tempo. Também não era cedo porque as portas das casas já estavam todas fechadas. Minha tia prenunciou:

"Amanhã teu primo e tua priminha viram aqui, moram logo ali, está vendo? Tem uma turminha legal da tua idade na rua. Vamos levantar cedo e caminhar na praia, que tal?"

Que promessas, em ouvidos amadurecidos, poderim garantir tanta segurança e preencher tão completamente os sonhos como essas que se fazem aos pequenos?

Me levaram ao quarto que seria só meu e quando repousei os cabelos dourados de anjinha no travesseiro, estava tão apaixonada por ser quem eu era e estar onde eu estava que não conseguia dormir. Não cabia em mim de tantos planos de felicidade que arquitetava para as minhas férias.

A janela do quarto dava para os fundos e, embora estivesse fechada, os vidros estavam abertos. Pelas frestas, o doce burburinho das vagas à se romper na arrebentação adentravam. O mar vinha pessoalmente namorar meus pensamentos e não conseguia acabar de tecer as alegrias que me esperavam.

Aquele verão foi explêndido, e mudou muita coisa em mim. Mas noite como aquela nunca se repetiu. Depois dela já não era mais infância. Depois dela vieram muitos sonhos, mas nunca de uma vez só. Nunca um sem fim de sonhar.

Foi na noite que atravessara sonhando acordada, que encontrei a felicidade que procurava.

Passei a minha noite angustiada nessa noite de menina. E quando levantei para o desjejum matinal, recordei-me das aulas de Drummond. Especificamente de um verso de um poema chamado Infância. Poema que a professora me fez ler em voz alta para toda a classe e achei tão sem graça como me senti o lendo.

Que verso! Que aula! Que professora! Que desoberta tardia de importâncias temos na vida! Tardia, enfim, mas não tarde demais...

Termino como termina o poema, como quero terminar um dia a vida. Com as rimas livres de um poema modernista:

 

E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

Infância - Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, abril 01, 2008

Vaca Profana

Eu costumava ser tão analítica há poucos anos passados! Não, não estou à me orgulhar disso. E, em minha defesa, quero computar que precisei ouvir Desolation Road apenas uma única vez para perceber que Robert Allen Zimmerman era o artista americano mais relevante no século que acabou de expirar. E quando eu digo americano, eu bem queria atribuir-lhe a faixa continental. Mas se pessoas desafinam até quando estão a falar o mesmo idioma, quem haveria de condená-las quando precisam ultrapassar fronteiras linguísticas? Além disso, só se pode sustentar a crença individual e, inúmeras vezes, não se lucra fazê-lo por muito tempo.

Embora ainda sinta traços fortes de uma filosofia dicromática e não dialética em meus instintos, estou vencendo a decepção que isso sempre me purgou. Ora, não é isso mesmo o sinal de que a relação causa-consequencia se abre às contraditoriedades?

Sim, estou sendo mais vaporoza do que permite a sensatez. Não peço desculpas, no entanto. Acordei mesmo com a disposição de tagarelar sem cerimônia. Quem põe os móveis p'ra fora limpa melhor a casa, dizia minha avó que não conheci.

Naqueles anos passados de que falei no início, minha melhor amiga era uma tal Emily Dickinson que nasceu em 1830. Ao contrário do que parece ser, foi ela quem me escolheu para amiga e não eu à ela. Logo no primeiro verso, me convocou:

I'm Nobody! Who are you?
Are you – Nobody – too?


Soube logo que se tratava de uma singular mulher à tentar comunicação com outras. Quis lhe prestar as honras nesse último dia 8 de março que passou, mas esse foi um dia de oportunidades perdidas. Farei uso, então, do 1º de abril, mesmo correndo o risco de ser mal interpretada:

Emily, we all can understand you.
Now, they are also - Nobody - too.


Sim, todos na mesma embarcação! Tenta-se decidir ainda a direção. Há momentos que penso que vão todos se afogar tal Virgínia Woolf. Mas acho que é só para sentir o sabor impiedoso e reedificante de descobrir que posso estar errada. Lembro-me agora que sempre quis citar Virgínia aqui:

“Escrever é que é o verdadeiro prazer; ser lido é um prazer superficial.

Escrever para si mesmo, sem dúvida, é coisa para gente ousada. E, (in)felizmente, o anônimato faz muita ousadia paracer modesta. De qualquer forma, o dia das mulheres já perdeu o sentido para mim. Não me sinto mais mulher do que qualquer homem e nunca gostei dessa distância de gêneros. Mas também com isso já não me importo. Uma coisa só é fardo se você tentar carregá-la e esse eu já deixei para trás.

Aliás, também quis comentar com alguém que havia muitos homens na minha última visita ao consultório ginecológico. Homens perfeitamente grávidos! Bom, muitos não é uma palavra precisa. Muitos significa apenas que é mais de um e que existem. Para ser sincera, esperava encontrar mais depois que pensei um pouco sobre o assunto.

Um vez eu cheguei a tentar uma lista das mulheres que admiro. Nessa lista havia nomes como Caetano Veloso, Goethe e Charlie Kaufman. Faz sentido - concluí - na lista de homens que admiro poderia incluir nomes como Elis Regina, Tarcila do Amaral e Sapho. A androgenia de moralidade desnuda desses indivíduos me faz querer colocá-los numa lista só para eles. Só para mim.

Também já quis fazer uma lista de intelectuais que ultrapassaram o conhecimento de sua época e não se distanciaram das massas. De filósofos comtemporâneos que não temem dar linhas ao biocentrismo. De músicos realmente engajados com a arte da música...

Há tantos exemplos incoerentes para se evitar, que tenho dificuldades para equilibrar-me sobre os referenciais.

Bem, preciso me despedir. Estão à bater na porta. Imagino que seja meu amor-próprio voltando do castigo que lhe dei. Já estou até vendo! Vai entrar pela porta remendado e cantando nossa canção favorita:

“Respeito muito minhas lágrimas
Mas ainda mais minha risada
Inscrevo assim minhas palavras
Na voz de uma mulher sagrada
Vaca profana, põe teus cornos
Pra fora e acima da manada”
«continua...»