quinta-feira, junho 12, 2008

1992

Em 1992, Julian era o garoto mais popular entre as meninas da sexta e sétima série da Escola Ildefonso Simões Lopes, pertinentemente apelidada de Rural. Ele não era alto e nem atlético. Não era nerd e nem mauricinho. Mas tinha cabelos longos escuros, sedosamente encarolado nas pontas, e tinha um ar de rebeldia. Aos olhos fantasiosos das meninas, que em fase tão inicial de paixões se alimentam quase que exclusimante de exterioridades, Julian seduzia com pouco ou nada de empenho.

Karina era descuidada demais com a aparência para chamar a atenção com a beleza que lhe era própria. Tímida demais para interagir com outras turmas. Só conquistava a amizade dos colegas pela habilidade com os estudos. E era popular apenas entre os alunos do ensino de agronômia, já que era a única do nível fundamental à frequentar a biblioteca com a assiduidade dos alunos do grau técnico.

Julian e Karina não se falavam, mas tinham amigos em comum. Todo dia, após a aula, juntavam-se à outros pré-adolescentes nas escadarias do prédio da Litoral, única rádio de frequência modulada da cidade provinciana. Ali ficavam em vários grupinhos durante os trinta minutos antes do entardecer se esvair. Tomando sorvete, conversando alto, discutindo sobre provas, jogos e rumores escolares.

Karina suspirava, exatamente como suas coleguinhas do sexto ano, quando via Julian, mas não se imaginava andando de mãos dadas com ele como elas o faziam. O garoto do sétimo ano pairava nos sonhos de Karina como algo intocável. Apenas gostava de pensar nele, nos seus cabelos, no movimento de seus braços quando conversava. Não havia desejos nos pensamentos com que o cercava, apenas um admirar platônico. Não tinha ciúmes de seu sucesso em atrair namoradas porque não se visualizava em possibilidades de ser uma eleita das atenções do menino.

Julian gostava de Metallica, mas no questionário de lembranças de uma amiga, na folha sobre música preferida, ele respondeu:

More Than Words, Extreme

Karina gostava de Guns n' Roses, mas na linha logo abaixo da dele escreveu:

Never Tears Us Apart, INXS

Todo dia ela deixava bilhetinhos pedindo que uma das duas músicas tocasse no programa Litoral By Night, que todos ouviam porque o radialista, Taborda, lia os recadinhos deixados pelos alunos entre uma música e outra.

Seguidamente havia recadinhos para Julian, mas Karina nunca deixou uma única linha. Nem sequer considerava fazê-lo se escondendo no anonimato. Mal admitia para si mesma que o adorava com o doce julgamento que fazia dele. Mantinha em segredo seus sentimentos para não sofrer as dimensões da indiferença.

Contudo, quis o acaso que um dos colegas de Julian se enamorasse da sua colega Mariana, e os grupos se vincularam. A menina acanhada, sem censurar muito suas articulações, acabou por exceder a vergonha e fazer amizades. Julian e Karina travaram algumas conversas inexpressivas, nas quais Karina o tratava com muita atenção. Disfarçando, vez por outra, os sobressaltos de sua respiração e o embaraço de estar em sua presença como se sua própria vida dependesse desse fingimento. Para ela, Julian ainda era o inalcansável de sempre. Nem por um segundo desconfiou que o menino andava se exibindo mais que o natural.

Quando Mariana contou-lhe que Julian havia lhe confiado a tarefa de arranjar um encontro com ela às escondidas, Karina teve de repetir mentalmente a idéia algumas vezes até conseguir garantir ao seu incrédulo coração que tal acontecimento estava mesmo se realizando.

Preciosos são os corações das meninas, que se expremem e palpitam aflitos antes do esperado primeiro beijo. E descontrolados quando os lábios finalmente são tocados pelo menino que dá ritmo à suas batidas. Karina teve as duas sensações em uma só. Num único beijo. No primeiro. Nem na imaginação mais frutífera poderia ter sido mais sublime o momento.

Vulneráveis são todos os corações do mundo, que da fonte do amor bebendo, só do amor se ocupam. Karina sumiu da biblioteca. Se limitava à suspirar nas aulas de matemática. Converteu-se torcedora do Internacional para corresponder seu par romântico. Tudo era planos na espera de Karina.

Veio o segundo encontro dos beijos exaltados de saudade. O terceiro, dos beijos repletos de carinho. O dia dos namorados se aproximava. Tudo era espera nos planos de Karina.

Mas os encontros acabaram inexplicavelmente. Ficaram interrompidos nas expectativas inconfessas da menina.

Ao invés disso, no dia 12 de junho, um recadinho no rádio denunciou: Julian e Fabiane estavam juntos. E antes que a garota considerasse se sentir culpada pelas coisas que disse e deixou de dizer, como fazem constantemente os que amam sem medida, outro recadinho lhe comunicava que, desde o início daquele ano, o melhor amigo de Julian era perdidamente apaixonado por Karina.



Dedico este conto à Gabriel Daudt. Autor do conto 1984, que serviu de inspiração à esse.
Está aí, eis que consigo escrever contos! Não será premiado na Feira do Livro de Porto Alegre como foi o teu, mas foi escrito para retribuir-lhe o presente de natal que recebi em fevereiro. Espero que não decepcione.
Um grande abraço da sua ex-funcionária inexpansiva, fã ausente e dedicada amiga.

Um comentário:

Gabo disse...

Avisem o Nelson que isso aí também é "A vida como ela é". Uma delícia o texto! Obrigado.
:-)